Publicado em 8 de junho de 2025 às 19:39
Desde que tomou posse, o presidente da Argentina, Javier Milei, vem repetindo que, para solucionar os problemas econômicos do país, sobretudo sua eterna inflação, o governo precisaria realizar "cortes drásticos" dos gastos públicos.>
O presidente libertário é o primeiro economista a liderar a segunda maior economia da América do Sul. Ele chegou a ilustrar sua intenção com uma ferramenta que deixava muito claro seu objetivo – e ficou famoso ao fazer sua campanha empunhando uma motosserra.>
Ao assumir o poder, Milei cumpriu sua promessa.>
O governo atual é o primeiro da história da Argentina a apresentar superávit fiscal desde o princípio. Ou seja, desde janeiro de 2024, o país arrecada mais do que gasta.>
>
A ampla maioria dos economistas concorda que o saneamento das contas púbicas foi fundamental para que a inflação caísse de mais de 210% ao ano, no final de 2023, para 47,3% anuais, que é o último número oficial, anunciado em maio deste ano. E muitos esperam que este número continue baixando.>
Para este ano, o Fundo Monetário Internacional (FMI) – que acaba de emprestar à Argentina mais US$ 20 bilhões (cerca de R$ 112,9 bilhões), em reconhecimento ao governo de Milei – prevê que a inflação caia para 35,9%.>
O FMI também projeta que, em 2025, o país terá o maior crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) da América Latina. A expansão prevista é de 5,5%, que representa mais que o dobro da média da região, de 2%.>
Mas os argentinos estão pagando um custo enorme por esta correção econômica. Funcionários públicos perderam seu trabalho com a redução do quadro estatal em cerca de 10%, segundo o governo. E professores não conseguem continuar lecionando nas universidades estatais, devido aos baixos salários.>
Isso sem falar no grave estado de muitas estradas e em outros tipos de infraestrutura afetados pela eliminação quase total dos gastos em obras públicas.>
Mas existem outros setores prejudicados que protagonizaram grandes manifestações contra o governo argentino. Eles organizaram um protesto conjunto, em frente ao Congresso, na última quarta-feira (4/6).>
Quais são estes setores? E por que eles contam com um apoio popular cada vez maior?>
>
Poucos anos atrás, eles eram os "heróis da pandemia". Hoje, o setor de saúde pública da Argentina enfrenta um dos piores momentos da sua história.>
O maior símbolo da crise é a situação do principal hospital pediátrico do país, o Hospital Garrahan, em Buenos Aires. Financiado pelo Estado, ele oferece cerca de 600 mil consultas e realiza cerca de 10 mil cirurgias todos os anos.>
Crianças de todas as partes do país vêm se tratar neste que é o centro especializado em assistência infantil de maior prestígio do país.>
Os funcionários do hospital convocaram uma eata na semana ada e outra na segunda-feira (2/6). Eles denunciam que o governo está "desfinanciando" a instituição.>
Os médicos residentes do Hospital Garrahan lideram os protestos. Eles entraram em greve, afirmando que seus salários (menos de US$ 700, ou cerca de R$ 3.950) estão abaixo da linha da pobreza.>
Representantes dos cerca de 1,8 mil residentes também afirmaram que, desde a posse de Milei, dezenas de médicos se demitiram para trabalhar em hospitais particulares.>
O governo ofereceu um aumento salarial de cerca de US$ 400 (cerca de R$ 2.260) aos médicos residentes, embora ainda não tenha oficializado a proposta. O governo argentino também afirmou que o hospital mantém o dobro de funcionários istrativos, em relação ao número de médicos.>
Mas o site de verificação Chequeado refutou esta informação. Citando dados do Departamento de Estatísticas do Hospital Garrahan, o portal demonstrou que quase 70% dos funcionários da instituição trabalham na assistência aos pacientes.>
O Centro de Dados do Chequeado afirma que, "durante o primeiro ano de gestão do governo de Javier Milei, as transferências de dinheiro do Estado para o Hospital Garrahan aumentaram em cerca de 10%, em termos reais (ou seja, considerando a inflação), em relação a 2023.">
"Mas, como o orçamento nacional de 2025 foi prorrogado, os fundos para este ano são os mesmos de 2024.">
Na prática, com o aumento dos custos causado pela inflação, isso equivale "a uma queda de 30%, em termos reais, sobre o ano anterior".>
Os protestos dos trabalhadores do Hospital Garrahan são os que contam com o maior apoio da população. Eles geraram incontáveis demonstrações de apoio e uma petição na plataforma Change.org que superou 240 mil s em poucos dias.>
Mas esta é uma dentre várias instituições de saúde pública que estão em crise atualmente na Argentina.>
Outro setor que conta com enorme simpatia popular é o das famílias que possuem pessoas com algum tipo de deficiência. Elas também levaram às ruas suas reclamações contra o governo.>
Quando assumiu o poder, Milei ordenou auditorias em massa, que levaram à suspensão de milhares de aposentadorias por incapacidade.>
Segundo o governo, trata-se de pessoas saudáveis que cometiam fraudes. Foram mencionados como exemplos os casos de algumas cidades em que um grande percentual da população recebia aposentadorias por incapacidade para o trabalho.>
Mas as famílias defendem que o governo usa esta desculpa para reduzir o financiamento da Agência Nacional para Pessoas com Deficiência (Andis, na sigla em espanhol).>
Elas também denunciam o congelamento dos valores pagos aos profissionais que cuidam de pessoas com deficiência. Seus ganhos não são atualizados desde novembro de 2024, apesar da inflação de mais de 2% ao mês.>
Na última quinta-feira de maio (29/5), familiares e prestadores de serviços se associaram aos funcionários do Hospital Garrahan para protestar em frente ao Congresso argentino. Os protestos prosseguiram na quarta-feira seguinte (4/6), ao lado de outros setores críticos ao governo.>
Houve também mobilizações nas províncias, buscando pressionar os parlamentares a declarar emergência nacional no setor.>
Esta medida estabeleceria um mecanismo de ajuste mensal, para que os prestadores de serviços recebam pagamentos adequados, e garantiria o o a aposentadorias por incapacidade, sem necessidade de contribuição anterior. >
Mas o governo já adiantou que irá vetar este projeto, se for aprovado pelo Congresso.>
Milei foi criticado não só pelos cortes nesta área, mas também pela sua falta de empatia e seus comentários discriminatórios contra pessoas com deficiência. Ele chegou a usar a palavra "inválido" para desqualificar militantes de esquerda.>
"À retirada de financiamento, soma-se a crueldade. Existe um enfurecimento", denunciou a atriz Valentina Bassi, mãe de uma criança com autismo, à rádio El Destape, de Buenos Aires.>
Outra área muito atingida pelos cortes dos gastos públicos na Argentina é a ciência.>
Nos últimos anos, governos de centro-esquerda (kirchneristas) e de centro-direita (macristas) priorizaram os investimentos neste setor. A Argentina se orgulha de ter produzido cinco prêmios Nobel, mais do que qualquer outro país da região.>
Mas a prestigiada ciência argentina foi um dos primeiros setores a sofrer o ataque da afiada motosserra de Milei.>
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi um dos organismos que ficaram de fora do novo organograma estatal do presidente libertário. Ele reduziu os cargos pela metade.>
Esta decisão chegou a levar 68 vencedores do prêmio Nobel a expressar sua "preocupação" com a "dramática desvalorização da ciência argentina". Agora, os cientistas do país alertam que o governo comete um "cientificídio", com a falta de investimentos.>
No último dia 28 de maio, organizações de cientistas se vestiram de "eternautas", em referência ao herói dos quadrinhos argentino que protagoniza uma das séries mais famosas da Netflix.>
Eles se mobilizaram em todo o país para denunciar a perda de mais de 4 mil postos de trabalho no setor, segundo dados oficiais analisados pelo centro de estudos Economia Política Ciência (EPC).>
Um terço destes cargos pertencia ao renomado Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet). O número de pesquisadores da instituição foi reduzido pela primeira vez em 17 anos.>
"Entre dezembro de 2023 e abril de 2025, frente a uma inflação acumulada de 204,9%, os salários dos pesquisadores do Conicet caíram em 34,7%, em termos reais", segundo a Rede de Autoridades de Institutos de Ciência e Tecnologia (Raicyt, na sigla em espanhol).>
Os idosos formam um dos grupos mais prejudicados pelas políticas de Javier Milei.>
O sistema de previdência social representa o maior gasto do Estado argentino. E também foi quem prestou a maior colaboração a esta inédita redução de quase um terço do orçamento nacional, que eliminou o déficit fiscal da Argentina.>
Um relatório recentemente publicado pelo Centro de Economia e Política Argentina (Cepa) indica que a perda do poder aquisitivo das aposentadorias e pensões representa 19,2% do ajuste dos gastos estatais em 2024.>
O governo do país conseguiu este ajuste "diluindo" as aposentadorias no primeiro trimestre (ou seja, aumentando seu valor abaixo da inflação) e mantendo congelado até hoje o bônus extraordinário recebido pela maioria dos aposentados desde o governo do ex-presidente Alberto Fernández (2019-2023).>
Este bônus foi criado como solução paliativa para a perda de poder aquisitivo pelos aposentados.>
Com o congelamento, o bônus perdeu grande parte do seu poder de compra. Mas as perdas dos aposentados não se restringem à sua receita.>
O governo também diminuiu a quantidade de medicamentos gratuitos oferecidos pela assistência social estatal aos aposentados e pensionistas. Esta medida atingiu ainda mais os bolsos dos idosos, que gastam uma parte considerável dos seus recursos com a manutenção da saúde.>
Por tudo isso, os aposentados realizam protestos em frente ao Congresso argentino todas as quartas-feiras. Estas manifestações costumam contar com o apoio de outros grupos críticos ao governo.>
Em muitas ocasiões, os protestos terminaram em repressão por parte da polícia, que aplica o "protocolo de segurança" criado pelo governo. As novas normas proíbem o bloqueio das ruas, que era uma forma habitual de protesto no ado.>
A eata da quarta-feira (4/6) buscou pressionar os legisladores para aprovar um aumento das aposentadorias e a prorrogação da chamada "moratória previdenciária" – um sistema criado há duas décadas pelo kirchnerismo, que permitiu que milhões de idosos, principalmente donas de casa, se aposentassem, mesmo sem terem realizado colaborações anteriores.>
A última moratória venceu em março do ano ado.>
Em 2024, o governo vetou uma lei sancionada pelo Parlamento, que pretendia aumentar o valor mínimo das aposentadorias, ressaltando que qualquer aumento colocaria em xeque seu objetivo de "déficit zero".>
"O sistema estabelece hoje que existe um [trabalhador] ativo e meio para cada aposentado, o que, obviamente, não se pode pagar", declarou o chefe de Gabinete do governo, Guillermo Francos, à rádio Rivadavia, de Buenos Aires.>
"Por mais que pretendam fixar um aumento dos valores, se não houver recursos, não será possível aprovar, de nenhuma forma.">
>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta